segunda-feira, 30 de março de 2009

Enquanto algumas prefeituras passam a perna no povo oferecendo uma merenda superfaturada...Zé Merenda dá o exemplo

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Tropeiro supera barreiras para entregar merenda

Zé Merenda é o herói da educação no interior de GO.
Conheça brasileiros que dão orgulho a todos nós: gente que acredita que lugar de criança é dentro da escola. Em um Brasil sem estradas, luz ou telefone, a esperança vem no lombo de um burro, na tropa do Zé Merenda.

Um tropeiro analfabeto é o herói da educação no interior de Goiás, aplaudido aonde quer que vá e amado por alunos e pais. “Bom demais! Vamos encher a barriga”, comemora uma família.

Mas a história de Zé Merenda começa bem longe. A hora da merenda é a melhor do dia. É fácil entender o porquê. “Eu não como antes de vir para a escola”, diz um menino.

Para muitas das crianças será a única refeição do dia. “Eles só vêm para comer a merenda mesmo”, comenta a secretária da escola, Ana Cristina Andrade.

“Terça-feira tem galinhada, quarta-feira, sopa de legumes e quinta-feira, canjica com coco”, anuncia a merendeira.

Com as tigelas raspadas, a sensação é de que foi muito pouco.

“Cada aluno tem direito a uma gramagem: 30 gramas ou 40 gramas, dependendo do que for servido”, afirma a professora Monique Gomes da Silva.

O dinheiro vem contadinho do Ministério da Educação: R$ 0,22 por aluno por dia. A lei diz que o município tem de completar a verba federal.

“Tem um valor lá que ela complementa, só que ainda não é suficiente para ficar uma coisa, assim, bem gostosa, uma merenda de maior qualidade”, reconhece Jaci Dias da Cunha, secretário de Educação de Cavalcante (GO), um dos municípios mais pobres do Brasil.

O índice de analfabetismo de Cavalcante ainda é muito grande. “Ele está ainda em torno de 40%”, informa o secretário de Educação.

Apesar disso, a prefeitura garante que 100% das crianças estão na escola por causa da merenda. Cavalcante, no nordeste de Goiás, fica a 320 quilômetros de Brasília e tem uma área maior do que a do Distrito Federal. Das 47 escolas municipais, 41 estão espalhadas pela zona rural de seu imenso território.

A funcionária pública Maria Evangelha da Silva é a coordenadora da merenda escolar. Ela cuida pessoalmente de cada um dos sacos que vão abastecer as escolas rurais.

“Tem arroz, feijão, açúcar e macarrão. Um saco dá, em média, para 20 dias. De 20 em 20 dias, a gente tem que estar levando”, diz a funcionária.

A equipe da Secretaria de Educação segue para a região Kalunga, onde vivem os descendentes dos escravos fugidos de Goiás. Para percorrer 50 quilômetros, levam-se quase cinco horas.

Já é noite quando não há mais estrada, e a caminhonete tem de entrar no cerrado. De um determinado ponto em diante, carro nenhum passa. O tropeiro José Pereira das Virgens já estava esperando a equipe de reportagem do Fantástico. É ele quem entrega a merenda para as crianças.

“Faço isso tem uns cinco anos já. As crianças estão alegres. Elas querem ver a merenda chegar. Aí já me apelidaram de Zé Merenda”, comenta, rindo, o tropeiro.

Nem bem amanhece e Zé Merenda já está acomodando os mantimentos nas bruacas de couro, ou então amarrando saco com saco no lombo dos burros. Zé sabe que as crianças aguardam a merenda com ansiedade.

“Às vezes, eles saem em horas que não tem comida para eles, e quando chegam na escola estão com fome já. Chega o recreio, eles vão e pegam um lanchezinho e aí eles se sentem mais fortes. Não estando chovendo, não tendo cheia de rio, com três dias dá para fazer o trabalho. O tempo hoje está meio esquisito. Está perigando dar uma chuvinha mais tarde”, comenta o tropeiro.

Foi só falar... Zé Merenda decide adiar a saída para esperar a chuva passar. “Eu já carreguei coisa molhada. Quando chega lá, tem trem que não presta mais”, lamenta. A chuva demora. Zé Merenda fica ansioso. “Fico preocupado. Eu fico pensando que atrasou e não chegou no dia certo”, conta.

No primeiro estio, a tropa parte para a viagem, mas o rio está cheio e é preciso esperar. “Não passa”, diz. Uma hora depois, o rio baixou o suficiente para a tropa passar. A saga da merenda entra em sua etapa mais difícil.

É um Brasil sem estradas, sem eletricidade, sem telefone e quase sem contato com o resto do país. A única ligação com o mundo é a tropa do Zé Merenda. É ela quem traz notícias, remédios, mercadorias e, claro, a merenda, o principal argumento para manter na escola as crianças da região mais pobre do estado de Goiás.

Vão de Almas é um vale imenso nas bordas do Planalto Central. Trilhas estreitas abertas há séculos por escravos e bandeirantes são o caminho da tropa. As escolas ficam a até meio dia de distância uma da outra. Os próprios professores ajudam a descarregar. Tudo vai ficar mais fácil.
Em uma escola, as aulas estavam suspensas desde o dia em que a merenda acabou.

“Eu tenho 22 alunos. Desses, para falar a verdade, acho que quase todos eles saem de casa sem comer nada. Tem uns que caminham até uma hora e meia para chegar à escola. A fome dói”, conta a professora Marisa Silva.

Marcelo da Cunha, de 12 anos, e Daniel da Cunha, de 11, cumprem o mesmo percurso todos os dias: uma hora de caminhada e uma travessia que coleciona histórias assustadoras.

“Foi um dia aí que quase que uma prima de nós morreu aqui afogada. Saiu bem ali num pé de pau”, lembra Marcelo da Cunha, de 12 anos.

Os meninos atravessam pinçando o leito pedregoso do rio. São idas e vindas o dia inteiro. “Quando chove demais, nós não vamos”, diz um grupo de meninas. As crianças tomam as precauções de rotina. “Eu boto o livro no plástico para não molhar. Já venho prevenido”, diz Daniel.

A dificuldade de acesso é tamanha que muitas dessas crianças jamais saíram do Vão de Almas. No máximo, foram à estrada mais próxima. “Dizem que o povo, quando vê um carro, se assusta. Tem muitas pessoas aqui que ainda ficam assustadas”, comenta Zé Merenda.

A professora Nira Pereira dos Santos tinha 12 anos quando viu um carro pela primeira vez. “Eu ficava pensando assim: ‘Mas como que a gente faz para entrar?’”, conta.

Hoje, aos 22 anos, Nira se lembra da sensação inesquecível daquela primeira carona de automóvel. “Eu ficava olhando assim, como ia passando, aquelas matas ficando para trás”, diz.

Mas a janela do mundo Nira só abriu quando aprendeu a ler. “Tinha um livro de Monteiro Lobato que era tão bom. Eu pegava porque ele contava tanto assim da vida das pessoas”, destaca.

Então, Nira foi ser professora. Ela sai cedo todo dia e caminha uma hora no sol. Carregando a barriga de oito meses de gravidez, Nira atravessa o rio para chegar à choupana onde ela e outro professor tentam fazer funcionar uma escola.

“Às vezes, chega a atrapalhar devido ao tom de voz, os alunos e tudo o mais. É muito próximo mesmo”, comenta o professor Reginaldo Silva.

A escola tem carteiras sem assento, um quadro retalhado e o pior: hora do lanche sem lanche.

“Eles chegam aqui sem tomar nada de café, não tomam leite. O aluno não tem como aprender”, afirma Nira.

Mas hoje haverá uma surpresa do Zé Merenda. Ele esteve ontem no colégio. Hoje vai ter merenda. O arroz doce já está fumegando no fogão.

“Nós estávamos meio perdidas dos preparos, mas agora já deu”, confessa a cozinheira.

As mãos são bem lavadas numa bacia d’água. Crianças, afoitas, ficam amontoadas na janela da cozinha. A merenda volta a ser a garantia da frequência escolar em Vão de Almas.

“Trazendo a merenda até eles, a gente sabe que eles vão ter uma aprendizagem melhor e um aproveitamento melhor”, acredita a funcionária pública Maria Evangelha da Silva.

Nenhuma distância é demasiada, nenhuma dificuldade é grande o suficiente quando o Estado quer agir.

“O Estado somos nós: sou eu, os professores, acho que são todos os funcionários que se responsabilizam e que arcam com suas funções. É cada um fazendo a sua parte para que isso aconteça”, define.

Uma funcionária idealista, uma professora sonhadora, um tropeiro brincalhão. Ao amparar as crianças pobres dos grotões de Goiás, os professores de Cavalcante e a tropa do Zé Merenda estão redimindo o Brasil.

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